Você já desejou viajar no tempo?
Quando se sente inesperadamente tonta e enjoada, Dana não imagina que está prestes a viver algo que parecia ser impossível e testemunhar a história – a sua história. Da sala de sua nova casa, em 1976, Dana é transportada para a Maryland do século 19, um local perigoso para uma mulher negra como ela. Antes mesmo de entender o que está acontecendo, Dana vê um garotinho se afogando no rio e, sem pensar duas vezes, corre em seu socorro. Assim que sai da água, ela se descobre o alvo de uma espingarda e, da mesma forma que chegou ao rio, volta para casa. Dana não compreende o que acabou de acontecer, mas logo fica claro que terá outras e outras chances de entender – ou pelo menos tentar.
Sabe aquele livro que combina elementos de forma inesperada e nos deixa refletindo sobre a história por dias e dias? Kindred foi assim para mim. Mais do que uma trama sobre viagem no tempo ou escravidão, a obra de Octavia Butler traz novas perspectivas sobre um assunto que, infelizmente, se mostra cada vez mais atemporal e inesgotável – o racismo.
A autora não deu à Dana a bagagem de uma mulher negra por acaso: mesmo com toda a vivência e consciência sobre seus antepassados, a personagem ainda se espanta com a crueldade que marcou aquela época. E é por isso que ela acaba sentindo que não se encaixa verdadeiramente em nenhum núcleo. E para nós leitores, só resta exercitar a empatia e entender, de uma vez por todas, que as raízes do racismo correm por territórios muito mais profundos do que podemos imaginar.
O relacionamento entre Dana e Rufus, o menino que ela salva do afogamento e quem acompanha ao longo dos anos, é um dos pontos altos de Kindred. Como o livro é narrado em primeira pessoa, vivemos todas as dualidades, conveniências e revoltas dessa relação como se fôssemos Dana. Além disso, as interações entre os dois e as expectativas da protagonista nos levam a refletir bastante sobre até que ponto o ambiente em que vivemos é capaz de nos transformar e influenciar.
Mas o que realmente faz de Kindred uma leitura tão enriquecedora é o fato de que todos os personagens são extremamente humanos e, por isso, cheios de nuances. Erram, acertam, vão da generosidade ao egoísmo e estão em constante transformação. No entanto, não leiam a obra de Octavia Butler esperando dedos apontados para o que é certo e errado. Porque tudo isso é subjetivo, principalmente quando você é privilegiado.
Título original: Kindred
Editora: Morro Branco
Autor: Octavia E. Butler
Ano: 1979
Avaliação: 5 estrelas