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Capítulo 30
Sarah
Por um momento, eu e o Nicolas permanecemos abaixados e com as mãos na minha bolsa, que ainda está no chão. Mais uma vez, os contrastes estão ali: acho a situação péssima e maravilhosa, sinto vontade de rir e chorar, quero fugir dele e abraçá-lo. Quando levantamos, os dois ainda com as mãos na bolsa, eu acho, ou quero achar, que ele está sentindo as mesmas coisas que eu. Mas é impossível ter certeza.
– Oi, desculpa pela trombada, eu tava com pressa.
– Ah, imagina, eu tava distraída também – eu respondo e a gente se encara por um momento – você tá bem?
– Tô, tô sim. E você?
– Peraí, vocês se conhecem? – o Douglas nos interrompe, obviamente sem entender nada. Eu não sei exatamente o que devo responder.
– Sim, nós… temos um amigo em comum – o Nicolas responde, depois de perceber que eu não sei o que dizer.
– Ah, entendi, um amigo em comum… – o tom do Douglas é de desconfiança e provocação – bom, foi um prazer, mas a gente ainda precisa pegar o metrô.
– Claro, claro – o Nicolas diz, também sem entender muita coisa. Mesmo assim, ele se arrisca – E Sarah… a gente se fala depois, sim?
Não digo nada, mas faço que sim com a cabeça e não consigo evitar que um pequeno sorriso se forme em meus lábios. Posso dizer que o Douglas não ficou nem um pouco feliz com as últimas palavras do Nicolas, mesmo sem saber exatamente o que tem por trás delas. E, então, eu sei que a noite será longa.
–
Durante o trajeto de metrô, o Douglas não fala nada, tampouco me toca ou olha para mim. Sei que, mais cedo ou mais tarde, ele vai mostrar o quão furioso está. Quando chegamos ao hotel, ele me pergunta se podemos conversar e eu assinto. Assim que entramos no meu quarto e eu fecho a porta, quase me arrependo.
– Então é por isso que você não quer voltar comigo?
– Não, Douglas. É mais do que isso.
– Ah, então você está me dizendo que já se decidiu e que vai ficar?
– Não foi isso que eu disse – eu respondo, já com o tom de voz mais alto – por que você tá agindo do mesmo jeito que eu agia? O jeito que fez você me perguntar por que eu não ia me tratar?
– Devo ter aprendido com você – o Douglas diz e eu vejo o sarcasmo nos olhos dele – e, então, quem é ele?
– É o Nicolas – provoco.
– Quem é ele?
– Temos um amigo em comum.
– Isso não responde a minha pergunta.
– Ele é um amigo.
– Ah, Sarah, pelo. Amor. De. Deus. Você acha que eu sou idiota?
– Às vezes, eu acho – digo mais rápido do que consigo pensar. Ele cerra os dentes e fica em silêncio por alguns segundos.
– Um mês. Um mês é tudo o que você precisa… – ele não termina a frase, mas eu sei que quer dizer que um mês é o que eu preciso para arranjar outro. Me sinto mal porque, em partes, é verdade.
– Como eu poderia saber que você ia voltar? Não foi planejado. Aconteceu…
– Eu achei que você me amasse, que fosse esperar por mim. Quatro anos de namoro, Sarah, quatro anos.
– Quatro anos e, mesmo assim, você foi embora da minha casa naquela noite e nunca mais me procurou.
– É diferente.
– O que é diferente?
– Você não parecia mais a garota por quem eu me apaixonei – ele soa tão sincero que me destrói por dentro – você me sufocava. Não me deixava fazer nada que não fosse com você, por você.
– Acho que é porque eu realmente não era mais aquela garota, Douglas. Eu não podia mais ser, nem que eu quisesse, depois de tudo o que aconteceu – eu respondo e sinto lágrimas nos meus olhos. A dor daquela noite e de tantas outras atrás me atinge de novo – e eu acho… não, eu tenho certeza, que nunca mais vou ser aquela garota.
– Tudo bem – ele diz, depois de mais alguns segundos de silêncio e respira fundo – bom, eu acho que é melhor eu ir para o meu quarto. A gente se fala amanhã.
Quando ele fecha a porta, eu deixo as lágrimas caírem. Me sinto triste, vazia, culpada e egoísta. Mas também me sinto aliviada porque agora sei o que devo fazer e, o mais importante, por que fazer. No momento em que eu vi o Nicolas na estação do metrô, eu soube que devia ficar. E não por ele, por mim. Claro que eu estou definitivamente apaixonada e quero me permitir viver essa história. Mas eu nem sei o que ele vai pensar depois que eu contar de onde eu venho e tudo o que eu carrego comigo e, provavelmente, sempre irei carregar. E quando eu imagino que ele pode desistir, eu não sinto que vou desmoronar.
–
Nem preciso dizer que dormir é uma tarefa impossível. E acho que não só para mim. Quando o sol está para nascer e eu já estou rolando na cama há mais de três horas, ouço três batidas na porta e sei que é o Douglas.
– Posso entrar? – ele ainda está de pijama e descabelado. Faço que sim com a cabeça e sinalizo para que ele sente na cama – bom, acho que você já tomou sua decisão – é uma combinação entre pergunta e afirmação, mas a voz dele é suave.
– É, eu acho que sim – respondo e caminho em direção à mesa do quarto, onde ele deixou a caixinha das alianças na noite passada.
– Eu não acredito, Sarah – ele diz, enquanto devolvo as alianças – eu vim até aqui, achando que a gente poderia resolver tudo.
– E a gente não resolveu?
– Não da forma que eu pensei que iríamos resolver.
– Mas você fez muito bem em ter vindo. Sei lá, eu acho que… – eu começo a falar, mas não tenho coragem de continuar.
– Você acha que…? Pode falar.
– Eu acho que, talvez, a gente meio que não se ame mais, entende? – ele faz que sim com a cabeça – quer dizer, eu precisei ficar longe de você pra perceber isso.
– Não sei se concordo com você. Por que eu teria vindo até aqui, então?
– Douglas, você acha que realmente queria voltar comigo?
– Queria, sim.
– Pelo que você diz, a vida do meu lado não tava fácil. Nem muito boa. Então, por quê?
– É, não tava mesmo. Mas… Sarah? – eu olho para ele e sei que ele vai ser o mais sincero possível – na última vez que eu conversei com a sua mãe, parecia que ela sabia o que ia acontecer. A gente tava assistindo a um desses filmes de drama entre mãe e filha, eu não lembro qual era. E aí, um pouquinho antes de você aparecer na sala, ela disse que, quando chegasse a hora certa, ela poderia ir embora se soubesse que existia alguém que iria cuidar de você para sempre. E olhou para mim. Na hora, eu não me importei, só concordei – ele faz uma pausa e respira fundo – só depois de tudo é que eu me lembrei desse dia e eu entendi, ou pelo menos acho que entendi, que ela queria uma garantia de que você ficaria bem sem ela. E que isso era responsabilidade minha também.
Eu já não consigo mais segurar as lágrimas e não sei o que dizer. Só de imaginar que ela, de alguma forma, sabia o que estava para acontecer me faz sentir completamente desamparada e com muita, muita raiva.
– Eu falhei – o Douglas diz e eu vejo que ele também tem lágrimas nos olhos.
– Não é verdade. Você não é responsável por mim. Eu lamento se ela fez você achar que era.
– Eu só queria fazer você feliz, sabe?
– Claro que eu sei. Mas eu nunca poderia ser feliz com você, se você não era feliz comigo.
– Mas eu prometi… – e a voz dele falha.
– Douglas, olha pra mim – estou ajoelhada na frente dele, que está sentado na beirada da cama – você não prometeu nada. Mesmo que ela tenha acreditado que você prometeu, você não tinha como saber.
– E como agora eu sei?
– Você acha que sabe, só porque ela não está mais aqui pra confirmar ou não. Se ela estivesse, você continuaria não sentindo o peso dessa suposta promessa.
– Não é um peso.
– Douglas, claro que é. É como se você tivesse assinado um acordo sem ler.
– Eu não quero que você fique mal – ele parece um menino de 10 anos, no máximo, ao dizer isso.
– Eu não estou mal. E eu não quero nossas vidas sejam definidas por uma promessa que você nunca fez de verdade – digo e sorrio, sem saber de onde estou tirando forças.
– E agora, o que a gente faz?
– Eu estou deixando você ir. Eu quero que você vá.
Depois de alguns minutos, o Douglas se levanta e me abraça forte. Então, eu tenho a certeza de que o que o trouxe até mim não foi o amor, a saudade e nem mesmo a culpa ou o remorso e não posso deixar de admirá-lo pela lealdade, não só a mim, mas à minha mãe. Quando ele fecha a porta e eu sei que, talvez, nunca mais o veja, eu entendo que uma promessa pode valer muito menos do que a verdade que, sem garantias, simplesmente permanece um dia após o outro.
Capítulo 31
Sarah
Desde o começo, antes mesmo de começarmos a namorar, eu achava que o Douglas era um cara digno do papel do protagonista de uma comédia romântica, com a diferença de que ele era real. Bonito, charmoso, atencioso, fiel, preocupado, especial, entre tantas outras qualidades, ele poderia conquistar a mulher que quisesse. Mas sempre escolheu se dedicar totalmente a apenas uma por vez: antes de mim, teve duas namoradas sérias e pouquíssimos romances casuais. Durante os primeiros meses de namoro, eu realmente me empenhei em descobrir as falhas de caráter dele, afinal, como um homem poderia ser tão perfeito? É óbvio que era apenas modo de dizer e ele tinha defeitos, sim, mas nenhum era digno da minha preocupação.
Agora que não estamos mais juntos, e provavelmente não temos mais nenhuma chance de reatar, eu continuo a pensar dessa forma. Porque a única vez em quatro anos que ele me desapontou de verdade foi quando saiu do meu apartamento, dizendo que não iria voltar enquanto eu não me tratasse. Mas, veja só, um mês e pouco depois, pegou um avião e trouxe um par de alianças para se desculpar por algo que nem era realmente culpa dele. É inevitável pensar em como eu pude deixar de amá-lo, se foi isso o que realmente aconteceu. Por um lado, eu sei que o amor é capaz de acabar da mesma forma que começa: de repente, por tudo e por nada. Mas, por outro, é praticamente impossível entender como deixar de amar a pessoa que está sempre ao seu lado, nos seus piores e melhores momentos. Porque é isso o que o Douglas foi pra mim.
Horas depois de vê-lo sair pela porta do meu quarto, eu ainda estou deitada na cama, com o cobertor sobre a cabeça e as luzes apagadas. Depois de deixar que todos os tipos de pensamentos tomem conta de mim, eu acho que consigo compreender que o Douglas era, e provavelmente continuará sendo, o tipo mais perfeito possível de homem. Mas, talvez, eu não seja o tipo mais perfeito possível de mulher. Talvez, tudo dentro de mim esteja quebrado demais para ser reparado. E, talvez, a minha complexidade seja muito grande para ser desvendada em uma comédia romântica.
–
Mãe,
Eu não acredito que, além de me deixar sozinha, você foi capaz de ir embora e largar um fardo desses nas costas do Douglas. Eu já achava que você era egoísta, mas, agora, eu penso que egoísta é um eufemismo pra tudo o que você é. Eu sei que eu disse para ele que não dá pra saber o que você realmente estava pensando quando falou aquilo. Mas eu conheço você o suficiente para ter certeza de que esse é exatamente o tipo de atitude que você tomaria se tivesse alguma ideia do que estava pra acontecer. E pensar que você, de alguma forma, sabia o que ia acontecer… meu Deus, mãe, isso me deixa simplesmente louca.
Eu sei o que você vai dizer: “aí é que tá, eu não te deixei sozinha, te deixei com o Douglas”. Mas você não entende, não é? Talvez, no último ano (ou até mais), ele tenha ficado ao meu lado só por dó, pena, remorso ou sei lá o que mais. As mesmas razões pelas quais você mesma poderia ter ficado, mas não ficou. Talvez você não tenha ideia do mal que causou a mim e a ele. Você, melhor do que ninguém, deveria saber que existem promessas que jamais deveriam ser feitas. E que uma promessa sem sentimento e sem vontade se torna obrigação.
Eu precisava libertar o Douglas desse fardo idiota e sem sentido. E estou feliz por tê-lo feito, assim, eu também libertei uma parte de mim mesma: a que pensava que ainda o amava. Mas, agora, tudo o que já estava rachado dentro de mim se quebrou em tantos pedaços, tão pequenos, que eu sei que é impossível encontrar todos. E o que eu vou fazer se nunca mais puder juntá-los?
Sarah
Capítulo 32
Nicolas
Faz três dias que eu não falo com a Sarah e eu nem sei se posso chamar esse tempo de espera porque não faço ideia se tem hora para acabar. O que mais me deixa louco nessa situação é o fato de não ter uma pista sequer sobre o que aconteceu. Na terça-feira de manhã, estava tudo bem. E, de repente, não estava mais. Ela desmarcou o piquenique de aniversário e não fez nenhuma questão de se explicar. Talvez eu me sentisse melhor se ela tivesse dado alguma desculpa esfarrapada. Eu sei que as coisas estavam evoluindo muito rápido entre nós, mais rápido até do que eu mesmo gostaria. Mas a nossa estratégia anti-joguinhos não permitia que deixássemos de nos ver, se isso era o que mais queríamos. Bem, talvez a vontade dela tenha passado e, como a sinceridade deveria vir acima de tudo, ela simplesmente se afastou. E, agora, aqui estou eu, agindo feito um neurótico!
–
Tudo o que eu precisava nesta sexta-feira era de uma folga. No entanto, justo hoje, estou em uma pauta à noite. Chego atrasado à inauguração da mostra no MALBA, mas, obviamente, o evento está mais atrasado do que eu. Levo mais ou menos uma hora para visitar a exposição e mais outra entrevistando convidados e curadores. Nunca uma pauta foi tão eterna. Quando finalmente termino o trabalho, penso em chamar um táxi para voltar pra casa. Mas, como ainda é relativamente cedo e eu estou mesmo precisando tomar um ar, decido voltar de metrô. Coloco meus fones de ouvido e começo a caminhar até a estação e, assim que chego à plataforma, vejo o trem parado e corro para embarcar. Durante o trajeto de metrô, me perco em meio a tantos pensamentos, que até esqueço de pegar o livro na mochila, e a viagem parece durar coisa de 10 minutos. Depois de subir as escadas para sair da estação, estou tão distraído, que esbarro em uma moça que acabou de passar pela catraca e derrubo sua bolsa. Na mesma hora, volto para me desculpar e ajudá-la. Abaixamos ao mesmo tempo e é quando eu vejo uma mecha de cabelos loiros. Sei que Sarah não é a única garota loira do mundo, e que aqui em Buenos Aires é até bem comum, mas aqueles fios dourados me fazem parar. A moça também para por um momento e continuamos abaixados, com as mãos na bolsa. E, então, eu olho para cima. É ela.
– Oi, desculpa pela trombada, eu tava com pressa – digo, para preencher o silêncio constrangedor.
– Ah, imagina, eu tava distraída também. Você tá bem? – ela pergunta e eu sei o que ela quer dizer.
– Tô, tô sim. E você?
– Peraí, vocês se conhecem? – diz um cara que apareceu sei lá de onde e que parece estar com a Sarah.
– Sim, nós… temos um amigo em comum – respondo, já que ela parece ter perdido a língua.
– Ah, entendi, um amigo em comum… bom, foi um prazer, mas a gente ainda precisa pegar o metrô.
– Claro, claro – falo como se não importasse. Mas, no último segundo, não resisto – e Sarah… a gente se fala depois, sim?
É só quando a Sarah vira as costas, não sem antes dizer que sim com a cabeça e deixar escapar um sorriso, que eu me dou conta do quão bravo eu estou. Mas, dessa vez, é comigo mesmo. Depois de quatro dias ótimos, a garota simplesmente cancela todos os planos e some, sem explicações. E quando eu a encontro, por acaso, com outro cara, ainda faço questão de que ela saiba que eu me importo. Que eu ainda estou esperando por uma explicação. E que eu já quero perdoá-la, antes mesmo que ela possa pedir perdão.