Aqui ou do outro lado

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Abro os olhos e a primeira coisa que vejo é o teto de losangos do meu antigo quarto. Ouço o barulho de panelas e pratos, típicos da cozinha de casa em dia de domingo, e um som que não escutava há exatos oito anos: a voz dela, da minha mãe, de um timbre quase grave e que preenche todo o ambiente. É tão estranho quanto familiar e me faz querer rir e chorar, de saudade, de alívio, de tristeza e de felicidade. A verdade é que eu não faço ideia do que está acontecendo, mas a perspectiva de descer as escadas e encontrar minha mãe sentada à mesa da cozinha, exatamente como antigamente, é o bastante para que eu desista de descobrir.

Troco o pijama por roupas que eu nem sabia que ainda existiam e calço os tênis no topo da escada, assim como quando eu acordava tarde demais e fazia barulho só para mostrar que “já” estava de pé. Ansiosa, desço os degraus, cruzo a sala, paro à porta da cozinha e lá está ela: sentada em sua cadeira predileta, distraída e concentrada, cantando ao som de Roberto Carlos e picando a carne em pequenos pedaços. Ainda não sei o que está acontecendo, mas sorrio ao constatar que a trivialidade, muitas vezes, é mais especial do que o inusitado. Ela levanta o rosto e, por mais que eu queira acreditar que jamais esqueceria seus traços, percebo que muitos detalhes já haviam se perdido na minha memória.

– A Bela Adormecida acordou? – ela pergunta e o tom irônico que oito anos antes me faria bufar me faz correr para abraçá-la – Ai, você tá me atrapalhando – minha mãe reclama enquanto eu a aperto, mas retribui o carinho e eu sei que também sentiu saudades.
– Senti sua falta.
– Eu também – ela responde e sua expressão ligeiramente confusa me faz entender que ela também não sabe o que está acontecendo. Mas também não está preocupada – Agora pega o afiador de faca pra mim.

O CD do Roberto Carlos acaba e minha mãe pede que eu coloque o do John Lennon. Cozinhamos juntas, o que era praticamente um hábito diário nosso, em um silêncio confortável, ao som apenas da música. E ali, naquele momento que costumava ser tão familiar e agora já não existe mais, me lembro da última vez em que vi minha mãe com vida. Ela estava no hospital e, apesar da situação desconfortável, se parecia com ela mesma, o que já não era muito comum nos últimos tempos. Durante os 15 minutos de visita, conversamos sobre meu novo estágio e eu acho que pensei que aquilo tudo poderia ser, enfim, um recomeço. Mas, na verdade, foi uma despedida, o que não deixa de ser um recomeço.

E eu lembro, como se tivesse acontecido ontem, que, antes que eu deixasse a UTI, minha mãe me abraçou, me deu um beijo na testa e disse “eu te amo”. Depois eu me perguntei se, de alguma forma, a gente já sabia o que ia acontecer e que aquela seria a última vez. Inevitável pensar e impossível responder, mas, sempre que a memória vem à tona, eu agradeço pela última vez ter sido como foi. Porque naquele momento não foram a exaustão, o ressentimento e o desalento que os últimos 15 anos causaram que falaram mais alto. Foi a minha mãe de verdade. A minha leve, carinhosa e bem-humorada mãe.

– Eu adoro essa música – ela quebra o silêncio, se deliciando ao som de Woman.
– Eu sei. Sempre vou lembrar de você quando ouvi-la.
– Eu sei – ela responde como se soubesse que, nos últimos oito anos, eu escutei esta música todas as vezes em que quis muito estar com ela de alguma maneira.
– Mãe – sento ao lado dela na mesa e tomo coragem de fazer a pergunta que me atormenta há tantos anos. Ela não diz nada, mas olha para mim – você cansou de tudo?
– Quer saber se eu desisti? – assinto com a cabeça e ela continua – Talvez.
– Tudo bem.
– Tudo bem o quê? – ela pergunta, mais preocupada do que ríspida.
– Tudo bem se você cansou, se você desistiu.
– Você sente minha falta? – ela praticamente me interrompe.
– Sinto. Todos os dias. Mas eu sinto tanto que acho que até me acostumei.
– Acostumou? – ela pergunta, ligeiramente magoada.
– Ah, mãe… você sabe, o ser humano se acostuma a tudo. É uma questão de sobrevivência. E você sempre me disse que a gente não recebe uma missão que não é capaz de cumprir.
– Talvez eu tenha recebido.
– Claro que não! Eu aprendi muitas coisas com você. Boas e ruins – digo e dou risada.
– Tipo o quê? – ela pergunta, ávida e curiosa, e eu me delicio com sua gargalhada nada discreta.
– Tipo ser corintiana. Tipo falar palavrão e dizer sempre o que eu penso. Ter senso de humor e ser espontânea. Me vestir de um jeito diferente a cada dia. Ser “curta e grossa” e talvez um pouco rígida demais.
– Você me entende?
– Melhor do que você imagina. E, às vezes, é isso que me assusta – confesso.
– E você aceita tudo o que aconteceu?
– Eu acho que, por um tempo, eu pensei que aceitava, quando talvez não fosse bem assim. Hoje, eu continuo sem saber se aceito ou não – faço uma pausa, toco a mão dela e a olho nos olhos – Mas eu respeito.
– Obrigada. E me perdoa – ela pede.
– Eu não tenho o que perdoar. Você não errou ou acertou mais do que qualquer outra pessoa – ela permanece em silêncio, então continuo – Quando eu penso em você, mãe, eu não desejo que as coisas tivessem sido diferentes, sabe? Depois que elas acontecem de uma maneira, é difícil imaginá-las de outra. É irreal demais, não faz sentido. Mas eu espero, muito, que você tenha conhecido a felicidade.

Ainda com as mãos entre as minhas, ela olha para baixo, talvez relembrando todos os momentos bons e ruins que passou e tentando decidir se conheceu a felicidade ou não. Volta a olhar para mim e sorri. Ela não responde e eu sei que não irá responder com palavras. Mas, de alguma forma, quando eu penso nos 18 anos em que dividimos nossas vidas, eu sinto, ou eu quero sentir, que absolutamente tudo valeu a pena.

– Mãe? – eu a chamo, saboreando cada letra da palavra que, desde 2007, vem acompanhada por verbos no passado (exceto um – amar).
– Sim?
– Eu também te amo. Muito e pra sempre.

Enquanto as palavras passam pelos meus lábios, abraço minha mãe apertado e dou um beijo em sua testa. Fecho meus olhos e, quando os abro novamente, vejo o teto branco do meu quarto. E, então, eu sorrio, feliz pela chance de reencontrá-la, nesta ou em outra dimensão, em um momento repleto daquilo que machuca tanto quanto cura e destrói tanto quanto constrói, aqui ou do outro lado: o amor.

[I love you. Now and forever]

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8 comments

  1. Maravilhoso o conto! Maravilhosa sua mãe! E mais maravilhada imagino que ela esteja com uma filha tão linda quanto você! <3

  2. Sem palavras, me emocionou muito. Me fez, obviamente, pensar muito na minha história também. Já falamos sobre o que é “pior é melhor” das duas e, apesar de não haver, confesso que queria ter uma lembrança mais vívida como a sua. Enfim, tenho certeza que tudo isso podia e seria verdade. Beijos :)

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