Vida após a morte

Querida Maureen,

Então é isso. É assim que chega ao fim a vida de uma pessoa. Com um tombo bobo e uma batida na cabeça. E pronto. Ela tem morte cerebral e só o que nos resta é esperar.

Já é de madrugada e eu estou sentado à poltrona ao lado da sua cama. É sábado e por isso estou passando a noite aqui, com você. Ou com o que sobrou de você. Nos outros dias, preciso trabalhar e só venho visitá-la duas ou três vezes durante a semana. E antes que você reclame, deixe-me explicar que eu quis largar meu emprego e viver com você, aqui, neste quarto de hospital. Mas os médicos me convenceram de que não era sábio, tampouco necessário. Que você já não precisa de mais nada, além de tempo.

Não importa quantas provas existam de que a vida não faz sentido, precisamos acreditar que sim, ela faz. – Quase uma rockstar, Matthew Quick

Confesso que esta não é a primeira vez que, desesperado de saudade, começo a escrever para você. Em todas as outras, desisti porque cheguei à conclusão de que não havia sentido em escrever uma carta que jamais seria lida pela única pessoa que deveria lê-la. Mas a verdade, a dolorosa verdade, é que colocar tudo isso no papel é apenas a pontinha desse meu iceberg de loucura. É apenas dar vazão a tudo aquilo cujo destino cada vez mais deixa de existir: você.

Sabe, nos filmes e nas novelas, quando eles mostram as pessoas à beira da morte, em uma cama de hospital, elas estão acinzentadas e sem vida. Mas quase nunca inchadas, amareladas, cheias de tubos e fios, vazias e irreconhecíveis. É tao pacífico quanto turbulento. É assustador. E, meu Deus, como eu queria poder virar para o lado e falar com você sobre como os filmes são generosos com as pessoas à beira da morte. Mas, adivinhe só, por mais que, neste momento, eu ainda possa virar para o lado e falar sobre isso, você não irá me escutar. E é isso o que me mata todos os dias: acordar e lembrar de tudo o que aconteceu e principalmente do que deixou de acontecer nos últimos meses.

Conheço a vida bem o suficiente para saber que não podemos acreditar que as coisas vão ser sempre iguais, não importa o quanto a gente queira. Não podemos impedir que as pessoas morram. Não podemos impedi-las de ir embora. Não podemos impedir nos mesmos de ir embora. – Por Lugares Incríveis, Jennifer Niven

“Bem, só morre quem está vivo”. Era o clichê que você dizia para encerrar o assunto sempre que ficávamos chocados com a morte de um conhecido ou até mesmo um famoso. Mas não é bem assim, Maureen, minha Maureen. Você não está muito viva, mas também não morreu. Ainda não está morta e tampouco vive mais. Pelo que os médicos dizem, pode ser uma questão de dias, meses ou, em hipóteses mais remotas, até anos. Meu bem, eu não quero me livrar de você e eu sei que saberia disso se ainda pudesse saber de algo. Mas eu simplesmente não aguento mais saber que você, assim como eu, está presa à tênue linha que separa a vida da morte. A diferença entre nós é que você está, definitivamente, condenada à morte, enquanto eu estou, aparentemente, condenado à vida. E o mais irônico é que, ao mesmo tempo em que eu desejo que você, enfim, abrace seu destino, ainda acordo durante a madrugada com medo de que você – ou os aparelhos que respiram por você – não esteja mais respirando. Nossa vida… sempre um paradoxo.

Sem você em casa para preencher minhas horas de descanso com sua mera existência (ah, como eu sinto falta disso), tenho tido bastante tempo para pensar. Infelizmente, só consigo pensar em tudo o que não fizemos, ainda que tenhamos feito tantas coisas. Nós não viajamos de Paris para Londres de trem. Não adotamos um gatinho para chamar de Nosso – HA HA HA, acho que sempre vou rir dessa sua piada horrível. Não compramos um forno elétrico – o que tudo bem porque você não vai mais fazer bolos para mim. Não vimos o por do sol juntos, da janela de casa. Não arrumamos o armário de bagunças. Não assistimos a todos os filmes do Jason. E etc.

O problema não é você não sobreviver, mas sobreviver. Todo mundo sobrevive. É isso que torna tudo uma desgraça do cacete. – O Mundo Pós-Aniversário, Lionel Shriver

Ah, também não deu tempo de ter filhos. E por isso eu agradeço. Porque assim nunca terei que assisti-los crescer com um buraco no peito. Nunca terei que guardar pra mim tudo o que, como pai, só poderia compartilhar com você, a mãe. Mas lamento mais, muito mais, por não poder, nunca mais, olhar para um pedaço seu que ainda vive. E por não ter nada nesse mundo, além de fotografias e histórias, que prove que eu e você existimos juntos. Ah, minha Maureen, o que nós fizemos foi muito mais do que existir juntos!

Eu sempre admirei você por ser, entra tantas outras coisas, inteligente e esperta. Mas até as pessoas mais geniais podem ser bobas e inocentes de vez em quando e, para mim, o seu ponto fraco sempre foi acreditar em vida após a morte. Só eu sei o quanto você tentou me fazer acreditar que sua avó ainda vagava pela casa da sua mãe. E que valeria a pena pagar para receber uma carta psicografada da minha querida madrinha, a tia Vitória. Era difícil me fazer mudar de ideia, Maureen, e você conseguiu me convencer de muitas coisas, muitas vezes. Mas, sobre esse assunto, você nunca havia feito progressos. Pelo menos até agora.

Sabe por que se apaixonar é o que pode acontecer de mais profundo com uma pessoa? Porque quando estamos apaixonados, estamos totalmente em perigo e completamente salvos, os dois ao mesmo tempo. – Cartas de amor aos mortos, Ava Dellaira

Se você ainda existe em algum lugar desse ou de outro mundo, quero que saiba que eu me rendo. Sim, você estava certa: a vida após a morte existe. Mas talvez não seja feita de céu, inferno, purgatório e fantasmas como você acreditava e, sim, de simples memórias. E é por isso que, apesar de ainda achar que tirar você de mim depois de apenas dois anos é a maior injustiça que já se viu, eu agradeço, porque sei que minha tristeza é feita de saudade e desespero, e não de culpa ou remorso.

A dor precisa ser sentida.  A Culpa é das Estrelas, John Green

Mentira. Eu me culpo, sim. Porque não lembro quais foram as últimas palavras que você disse para mim. E acho que, se eu pudesse voltar no tempo, não impediria você de subir naquela pedra. Porque se a aventureira e destemida Maureen não insistisse em subir naquela pedra, então não seria a verdadeira, a minha Maureen. E eu também não pediria mais tempo com você. Eu só queria realmente olhar nos seus olhos, seus olhos cor de café, sabendo que seria a última vez. E eu gravaria cada segundo desse momento derradeiro, consciente de que o fim é inevitável e esperançoso de que o esquecimento é uma escolha.

Acho que consigo viver sem você. Mas não uma vida de verdade. – LigaçõesRainbow Rowell

Por enquanto, eu só queria que você partisse de vez. Dizer isso talvez seja cruel, até insensível, e é definitivamente egoísta, mas então eu poderia lamentar e sentir saudades. Poderia viver sua ausência e tentar me acostumar a ela. Poderia fantasiar sobre todas as coisas que não tivemos a chance de fazer. Porque eu sei que enquanto o seu corpo ainda estiver aqui, por mais irrecuperável que ele tenha se tornado, eu vou esperar, mesmo com todas as chances contra mim, pelo dia em que nunca mais poderei comer pizza, tomar cerveja, jogar videogame, ir à praia, entre outros prazeres que prometi em troca da sua vida – e que Deus, ou quem quer que seja, aparentemente não achou tão interessante quanto tirá-la de mim. Me entenda, querida Maureen, que eu não aguento mais imaginar como é viver sem você. E eu só quero saber como será a minha vida após a morte.

Com amor,
Theo

Leia mais contos aqui!

10 comments

  1. Sensível e verdadeiro.
    “Mas a verdade, a dolorosa verdade, é que colocar tudo isso no papel é apenas a pontinha desse meu iceberg de loucura.”
    Que você coloque td essa “Loucura” no bom sentido pra fora. rsrsrssr
    Adorei!

  2. É muito difícil afirmar com 100% de certeza, mas acho que esse foi o meu preferido.
    Conversamos sobre a morte hoje e esse conto contém um pouco do que senti e ainda sinto, mesmo sendo direcionado para outro tipo de “relação amorosa” (existem variações, né).
    Obrigada por este conto, amiga. De verdade.

Deixe uma resposta para Nádia Tamanaha Cancelar resposta