Eidan estava sentada no chão, com o queixo sobre os joelhos, enquanto observava as paredes em tom de lilás e os armários brancos vazios e lembrava do tempo em que a maioria das amigas queria ser como a Barbie e ela sonhava com a casa da boneca. Quando brincava, a grande diversão não era o romance com o Ken, dirigir o conversível luxuoso ou trocar a roupa por outra ainda mais glamourosa. Era arquitetar a casa da Barbie, decidir onde cada móvel ficaria e cuidar da decoração. Quando considerava o espaço pronto, Eidan dava a brincadeira por encerrada e, muitas vezes, já começava a planejar a próxima casa da boneca – ainda que os objetos fossem os mesmos de sempre, as ideias de Eidan nunca eram iguais.
Aos 8 anos, enquanto tentava decidir se o conceito aberto era ou não uma boa alternativa para a cliente Barbie da vez, ela se deu conta de que, um dia, teria uma casa de verdade, que não seria construída sobre um pedaço de carpete antigo, nem decorada com objetos de plástico. Seria de concreto, seria de verdade, seria sua. E, então, Eidan entendeu o significado da palavra sonho, além do universo paralelo com o qual eventualmente se deparava enquanto dormia.
Mais ou menos aos 12 anos, as amigas trocaram as Barbies por revistas de comportamento, e Eidan passou a comprar as de decoração. Aos 16, começou a invejar os norte-americanos, que eram praticamente obrigados a morar sozinhos ou em dormitórios durante a faculdade. No ano seguinte, decidiu estudar arquitetura com foco em decoração, o que não foi surpresa para ninguém, e nunca confessou, nem a si mesma, que tentara entrar em algumas universidades do interior não pela qualidade do ensino, mas pela oportunidade de ter a versão “beta” de sua própria casa. No entanto, as melhores opções estavam mesmo em sua cidade e, como não era irresponsável o suficiente para ser reprovada de propósito, fora obrigada a adiar o sonho.
Simples e complicado, como a maior parte das coisas verdadeiras. – Todo Dia
Aos 24 anos, apesar de recém-formada, Eidan já havia trabalhado para muitas Barbies da vida real e adivinhe só? Se preparava para, enfim, ser sua própria Barbie. Foram longos 15 meses, entre a compra do apartamento e o fim da grande reforma, de ideias, planos, desejos, frustrações, surpresas e realizações. O grande dia havia chegado e ela estava feliz, mas também estava triste. O vazio dos armários e das paredes refletia o seu próprio vazio. Eidan não entendia. Sozinha em seu (antigo) quarto, balançava a cabeça em negativa, quando ouviu três batidas à porta.
– Ei, posso entrar, pela última vez? – disse o pai de Eidan, animado.
– Oi, pai – ela respondeu, cabisbaixa.
– Será que não deveria ser o contrário?
– O quê?
– Era pra você estar feliz e eu, triste – Eidan sorriu, em concordância, e encostou a cabeça no ombro do pai, que havia sentado ao seu lado.
O grande sonho de Eidan era ter a própria casa, mas nunca teve pressa de realizá-lo porque amava morar com a família e se dava muito bem com a mãe, a irmã mais nova e o irmão mais velho. Já com o pai, “se dar bem” era um eufemismo. Desde sua primeira lembrança, Eidan sabia que a relação deles era especial. Não que ele fizesse diferença entre os três filhos ou que ela não amasse também a mãe, pelo contrário: era capaz que nenhum deles percebesse, mas Eidan e o pai simplesmente sabiam que ali existia uma conexão, do tipo que “já nasce assim”.
– Quando você saiu da casa da vovó, também se sentiu vazio?
– Não, eu me senti cheio. Cheio de coisas boas – o pai respondeu e os dois deram risada – eu também sonhava em morar sozinho, Eidan.
– Mas eu sei que você queria se livrar da vovó – ela disse com um sorriso malicioso, porém compreensivo – e você sabe que, pra mim, essa vontade não tem nada a ver com vocês.
– Sei, querida. E é por isso que está sendo tão difícil pra você.
– É, acho que sim.
Maybe there is something you’re afraid to say, or someone you’re afraid to love, or somewhere you’re afraid to go. It’s gonna hurt. It’s gonna hurt because it matters. – Will & Will
A intimidade entre Eidan e o pai era do tipo que permitia que um longo silêncio nunca fosse constrangedor. E, desta vez, ela aproveitara para refletir sobre o que ele acabara de lhe dizer. Eidan havia mudado de casa quatro vezes: duas durante a infância e outras duas na adolescência. E, em todas, lembra de ter adorado o ritual de encaixotar o passado e desempacotá-lo no futuro; a necessidade de rearranjar o quarto e a oportunidade de executar novas ideias de decoração; e a expectativa sobre de quais fatos inesquecíveis de sua vida a nova casa seria o cenário. Não havia espaço ou tempo para o medo, o vazio e a tristeza.
– É diferente dessa vez – Eidan disse, interrompendo os próprios pensamentos – das outras, era só animação e expectativa. Agora, que eu deveria estar mais feliz do que nunca, me sinto… vazia e até um pouco triste.
– É normal que seja assim, Eidan.
– Normal?
– Essa não é uma empreitada dos seus pais, que você é obrigada a abraçar. Pela primeira vez, é o contrário: é sua empreitada, que nós somos obrigados a abraçar. É sua responsabilidade.
– Mas não é o que eu sempre quis? – a pergunta era, na verdade, uma afirmação.
– O que a gente quer é sempre o que dá mais medo. E se tudo o que você sonhou e desejou por anos se revelar uma completa porcaria? Não que eu ache que é isso o que vai acontecer…
– É, você tem razão. Acho que empacotar todas as minhas coisas e ver meu quarto vazio me deixou com aquela saudade que chega a doer.
– Que bom – respondeu o pai, com sinceridade.
– Bom? É horrível, pai.
– Pode parecer horrível, mas não é. Significa que o que você viveu até aqui valeu a pena – ele disse e sorriu para a filha.
– Você sempre sabe a coisa certa a dizer, não é? – Eidan respondeu e devolveu o sorriso – mas é também como se eu estivesse deixando a Eidan que sempre fui para trás.
– E não está?
– Mas eu não quero. Quero ser a Eidan de sempre, só que em uma casa nova.
– Querida, as grandes mudanças sempre nos fazem perder alguma coisa. Mas as mudanças verdadeiramente boas sempre fazem com que ganhemos algo maior.
– É, acho que sim – Eidan respondeu após alguns segundos de silêncio e suspirou – nossa, pai, quando foi que você virou filósofo? – brincou a garota para quebrar o clima, que ficara sério demais para o seu gosto.
Eidan entendeu o que o pai queria dizer. Mas pensava em todas as coisas que encaixotara – cartas e bilhetes de amigos (quando ainda se trocava cartas e bilhetes), fotos antigas, boletins escolares, cadernos da faculdade, presentes da infância – e ainda não compreendia como podia sentir que uma nova Eidan moraria em seu apartamento perfeitamente decorado se tudo o que ela era estava indo junto. Bem, tudo, menos o pai, a mãe e os irmãos.
– Acho que tenho medo – admitiu Eidan, após mais um silêncio não constrangedor.
– Do que, querida?
– De chegar “em casa” – fez as aspas com as mãos – e descobrir que ela não vai se transformar em lar automaticamente. O que quero dizer é: vocês não estarão lá – ela sentia os olhos arderem, mas não queria chorar.
– E é claro que não vai, Eidan. Mas aquele apartamento é sua cara e, você vai ver, quando menos esperar o que você chama de “lá em casa” terá mudado de lugar. E aqui será “a casa da mamãe” ou, espero eu, a “casa do papai”.
Por nós dois, a palavra casa não é um lugar. É uma pessoa. E nós, finalmente, estamos em casa. – Anna e o Beijo Francês
Eidan levantou a cabeça do ombro do pai e sorriu por achar que começava a entender o porquê de não ter tido tempo para o medo, o vazio e a tristeza nas quatro vezes em que se mudara. Naquela época, não importava se a casa nova seria bonita, feia, grande, pequena, velha ou nova. Se seu quarto ficaria exatamente como havia planejado ou se o novo lar seria o cenário de acontecimentos bons ou ruins. O que realmente importava era que sua família sempre estaria lá.
– Como é mesmo aquela frase? – perguntou o pai, com olhar distante, interrompendo os pensamentos de Eidan – ah, sim: nosso lar é onde o coração está.
– Não dá pra ter dois corações, pai – Eidan respondeu, triste e gentilmente, com um leve revirar dos olhos e um sorriso tímido.
– Mas dá pra ter duas casas, querida.
Leia mais contos aqui!
Ai, Ná!! Me emocionei!!!
Ficou muito bom… Parabéns!!! Estou orgulhosa!!!
Até me identifiquei com alguns sentimentos!!
Será que a Eidan encontrou bilhetes e cartinhas da Arinak?! rsrsrsrs
Obrigada, Ká, significa muito pra mim <3
E, sim, a Eidan encontrou muitas cartinhas da Arinak hahahaha
Ná, ficou muito bom =) Ai de você se não publicasse. Guardaria até uma citação: “O que a gente quer é sempre o que dá mais medo.” Totally true.
Beijo
Obrigada, Vi :) <3
Também gostei Ná! Me emocionei :´( E me identifiquei bastante com a história: sempre brinquei de barbie e adorava montar a casinha dela e na época em que fui escolher que faculdade faria, arquitetura e designe de interiores entraram na minha lista por causa disso :D Bem agora não chega a hora de ter minha casa própria :). Enfim, está de parabéns!! <3
Obrigada, Val :)
Não sabia desse seu lado decoradora! Tá vendo, sem querer, acabei colocando um pouquinho de você <3
[…] é uma personagem extremamente tridimensional e me conquistou pela sua paixão pela escrita, o que me inspirou a escrever ainda mais, entre outras características. Mas estes são apenas mais alguns dos (grandes) pontos positivos do […]
Af best, q orgulho de vc!
Qndo crescer vou escrever assim tb! Mentira, até pq não tenho a menor vocação, mas estarei sempre aqui pra ler, o que eu acho q faço mto bem! =D
<3 <3 <3
<3 <3 <3
Que amor de comentário! E, sim, você é minha leitora number one :D
Dom é dom, né? Não deixa morrer nunca, tá? <3
Senti que tem um pouco de experiência da sua própria vida nesse conto, o que deixa ainda mais especial.
Pelo menos, Eidan jamais vai sentir como se não tivesse nenhum lar, nenhuma casa.
Ah, quem me dera ter o dom, hahaha! Mas fico feliz que tenha gostado dos meus devaneios!
Acertou! Esse “conto” é totalmente a minha experiência de sair de casa, depois de 26 anos morando no mesmo lugar, sem nunca ter trocado nem de quarto!